quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
Pel Caç Nat 60 Guiné 68/74 -P44: Mundo de pernas para o ar.
Mensagem do Plácido Teixeira da C. cav 3365 S. Domingos 71/73 com data
de hoje.
A viver nos Estados Unidos Boston.
Chegados a Guiné, estivemos atracados ao largo de Bissau, era noite
e havia o cheiro seco de Africa.
Conhecia eu a Africa, esperava ver bonitas e limpas praias, bananeiras,
mangos, palmeiras, as tipicas queimadas do mato! Fazendas e muito
mais. A África que eu conheci quando era crianca. A bonita baia da
cidade de Luanda!!
Amanheceu e que espanto para mim ao ver Bissau!! Praias escuras,
somente lama.... vi tristeza e pobreza vi a Africa que afinal eu nao
conhecia... Levaram-nos depois em camioes como porcos quando vao para
o matadouro! Fomos para o Cumere..para um estagio ...IAO..., como eles
diziam!! Ali recebemos o primeiro ataque....um enxame de abelhas de
África que invadiram a caserna e demorou horas ate que elas se
decidissem retirar. Tambem, no Cumere, tive a coragem de enfrentar o
Capitao e expressar os meus sentimentos quanto aquela guerra que afinal
nao nos pertencia!! Dei-lhe a saber que embora muito novo na idade, eu
tinha os meus ideais e tinha os meus planos para a vida.. Nao ficou
muito impressionado, como era de esperar! Fez ameacas, mas isso nada me
disse, ou intimidou!! Eram palavras que saiam da boca de um labrego
de carreira militar, pelo qual eu nao tinha respeito!!..Estava em causa
a minha vida, o meu futuro e acima de tudo a minha saude....A liberdade
chamava por mim! Era concerteza a mesma liberdade que queriam as
pessoas que teriamos eventualmente de enfrentar!
Fomos depois para S.Domingos, de lanchas velhas e sem seguranca,
navegando por rios salgados e pantanosos, canais com agua escura .
Perigo estava em todos os lados. Apesar de anedotas e sorrisos,
havia dor e angustia. Medo nao se pode dizer que nao havia. Eu
olhava a minha volta, perguntava a mim proprio, onde estaria a selva
Africana? Onde estao os animais selvagens? Elefantes, leoes, etc? Eu
nao acreditava que aquilo fosse Africa, ou entao era uma Africa
diferente da que eu conhecia, ou estaria eu sonhando?
Por esses canais transportados nas velhas lanchas da Marinha,
finalmente chegamos a S. Domingos!! Podia agora ver terra vermelha de
Africa, ver o velho cais de madeira ao qual tantas vezes eu iria.
Pisei novamente solo Africano. Africanos que afinal eram pessoas
humanas como nos, nao o inimigo que nos ensinaram nos tempos de
escola!!! Por algum longo tempo, seriamos afinal todos familia,
todos irmãos. A noite deitei-me, entreguei-me ao destino, a D.s e
depois dormi!!. Sonhei com a minha terra, com os verdes montes, o rio
cristalino e limpo la em baixo no vale, as aves a voar pelas encostas
floridas das serras. Sonhei com a familia e uma ou outra amiga ou
companheira de escola. Nao queria acordar! Queria sonhar! Queria que
aquela realidade fosse tambem um sonho, ate mesmo um pesadelo. De
manhã acordei, orientei os meus sentidos e vi finalmente onde
estava!! Para onde me tinham levado. Ganhei coragem e levantei-me.
Olhei a minha volta e disse a oração mais sagrada da minha Fe!! .. Tive
um arrepio enorme quando vi o arame farpado todo a volta. Tremi, tive
medo e ate chorei. Veio-me a memoria imagens de um passado
recente!!.Imagens de fome e tragedia. Chorei, continuei a olhar. Vi
macacos nas árvores que estavam por perto. Apercebi-me, entao, que
afinal havia vida por aqueles lados... depois pensei!! .Pensei que ""
O mundo se VIROU DE PERNAS PARA O AR!! Depois foi o dia a dia, semana
a semana , perigo, solidao, tristeza, saudades e amizades. Ficamos
todos amigos e eramos entao uma familia . Sofriamos o sofrimento de
cada um e a dor de quem tinha dores era comum..
Escrevia e lia cartas de amigos que nao sabiam ler ou escrever.
Ensinei a ler quem nao sabia. Muitas vezes transformamos a tristeza em
alegria. Demos conselhos uns aos outros e desses conselhos nasceram
ideias para o futuro, para a vida em frente. Cuidavamos de quem adoecia
e compartilhavamos o desespero dos mais desfavorecidos. Tinhamos
pesadelos e sonhos para o futuro. Com esses sonhos da vida,
conquistamos os pesadelos. Enfrentamos o pior que o destino atirou
contra nos. Fomos fortes, destemidos e fomos valentes!!!
O dia a dia era igual a todos os dias. Sempre a pensar na semana e mes
seguinte. !!!! Esperando mais um ataque, uma boa visita, fugir
para os abrigos, uma bebida fresca, um pouco de conforto, talvez ate
uma carta ou uma musica agradavel!! Com a vontade de D.s o dia de
regresso chegou finalmente.!!. Ouve alegria misturada com tristeza.!!
Abraços misturados com lagrimas. Para tras ficariam os nossos amigos
africanos, as nossas lavadeiras, a Tabanca o rio Cacheu !! Ficaria
tambem o arame farpado que tao mas memorias me deixou!! Ficou tambem a
saudade de quem infelizmente ja nao podia estar connosco!! A
lembrança daqueles que tristemente nao podiam confraternizar e
partilhar a nossa alegria. Fomos para Bissau, depois partimos para
Lisboa. Foi uma viagem de aviao, talvez recompensa pelo sofrimento
que tivemos em S.Domingos. Novamente em terra que nos era bem
familiar!! Havia familiares a gritar os nossos nomes, havia emocao!!
Demos uns aos outros o abraço final!! Uns para sempre, outros ate
breve e outros ate um novo reencontro!! Ficaram porem as fotografias
e as memórias, as cartas e os sonhos de uma guerra bruta, imoral, de
ocupação!! Hoje em dia a vida e diferente. Mais velhos, casados pais
de filhos, avos.O regime foi-se. Houve Democracia e com esta a
liberdade que nos faltava. Na memoria continua ainda a saudade dos
que nos deixaram . Devo tambem lembrar ainda a miseria e pobreza de
muitos sem abrigo, que foram ex-Combatentes...Estes mereciam melhor!
Realmente o... MUNDO VIROU-SE DE PERNAS PARA O AR G.d
bless you all
Fotos © Plácido Teixeira C. cav 3365 Direitos Reservado:
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4 comentários:
Saudoso amigo Plácido
Só posso dizer que este teu extraodinário e comovente relato é o retrato fiel da nossa chegada à Guiné e a S. Domingos há 39 anos.
Quando deparo com as fotos da nossa chegada a S. Domingos tiradas há 39 anos, não posso deixar de me comover, tal como me emociono com cada palavra tua, reveladora do drama e do sofrimento por que passaste, e por que passamos. Dou o meu testemunho de que o que aqui revelas é a mais pura verdade.
À excepção dos militares de carreira, e esses talvez fossem só os Sargentos e o Capitão, todos os outros que ali estavam eram Milicianos, que estavam ali obrigados.
Cada um, há sua maneira, ou até com "terapia de grupo", fomos arranjando defesas para aguentar os dois anos de martírio. É muito doloroso lembrar os que chegaram nesses batelões, e com os quais partilhamos a tristeza da chegada, alguns mais corajosos que nos enxugaram as lágrimas, e que passados 2 anos não estavam connosco nos batelões para festejar a alegria da partida.
Recordo aqui os que a memória ainda me permite lembrar, que são o meu Alferes Abel Fortuna, do Porto; o Nunes, da Trafaria; O Viana, do Barreiro; evacuados por ferimentos graves, e a quem envio um fraterno abraço.
Lembro ainda, com eterna saudade, outros amigos que partiram para sempre, o Carlos, do Alto Alentejo; O Cavaco,do Alto Alentejo; e o Inácio, de Ourique. Para estes e para outros companheiros que partiram desta vida, digo, adeus amigos até um dia...!
Ex-Furriel Bernardino Parreira - Faro
Meu amigo Parreira
Muito obrigado pelas bonitas palavras.Sao afinal pessoas como tu que dao coragem e apoio para se escrever o que se escre, ajudar a deitar ca para fora o que estava guardado ha tanto tempo, e afinal uma boa terapia.
Muito obrigado que D.s nos de muitos anos de vida e nos ajude a gozar com a familia o que a vida tem melhor para oferecer.Um abraco meu amigo e obrigado
Boa noite,
Caros amigos:
Parreira, e Plácido:
Para o primeiro vai a minha ademiração, da maneira singela como lembra os seus camaradas...
Para o segundo vai a minha retribuição pelos excelentes trabalhos, que elabora com grande paixão ao escrever sobre si e os seus camaradas...
E como escreve!
Um abraço para os amigos.
Manuel Seleiro
Caro amigo Seleiro
Mais uma vez o meu reconhecimento pela oportunidade que nos dá de revelar no seu Blogue, em primeira mão, memórias e fotografias que marcaram as nossas vidas, mas que estavam guardadas no baú das recordações.
Devo acrescentar que se deve ao amigo Seleiro o mérito de fazer com que o Plácido "desenterrasse" esse passado e partilhasse connosco fotos e histórias inéditas que se julgavam perdidas.
Pela minha parte, confesso que não tenho muito jeito para escrever, mas reconheço o talento do meu amigo e companheiro Plácido Teixeira, que narra fielmente as nossas vivências, quer nas alegrias quer nas amarguras.
Daqui saudo igualmente o povo guineense, que compartilhou connosco alegrias e tristezas.
Para o amigo Seleiro um abraço de sincera amizade
B. Parreira
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